Muro de Gerês
Estive algumas vezes em Portugal. País lindo, de gente acolhedora. Terra da nostálgica Amália Rodrigues (1920-1999), que Foi Deus*1 quem levou, faz pouco tempo (estávamos em 2000). Sempre gostei de ouvi-la cantando esse fado, ao som de guitarras afinadíssimas e chorosas. Por sinal, contam que, influenciada por amigos, não iria gravá-lo. Entretanto, reconsiderou, e seu sucesso foi imenso. Sorte para Amália, sorte para nós! Isso me lembra outra história, a de que alguns artistas famosos de Hollywood se negaram a interpretar o papel principal de nada mais nada menos que Casablanca. Sorte para Humphrey Bogart*2 e para nós também!
Uma dessas viagens deu-se em novembro de 1994, depois que o Dr. José Aparecido de Oliveira*3, então Embaixador do Brasil na terra de Luís de Camões (aprox. 1524-1580), ligando lá para casa, fraternalmente “convocou-me” para assistir, na capital lusitana, ao lançamento da pedra fundamental da sede da Fundação Luso-Brasileira do Mundo de Língua Portuguesa.
Presente estava, entre diversas personalidades de Portugal, da África e do Brasil, o eminente arquiteto Oscar Niemeyer*4, com sua voz calma e afetuosa e seu coração grande e apaixonado pelas causas sociais.
Após a solenidade, o Embaixador apresentou-me o Dr. Jorge Sampaio*5, que, naquela ocasião, presidia a Câmara Municipal de Lisboa. Em 1996, ele se tornou o Presidente da República. Em seguida, houve uma recepção na casa do amigo Aparecido, sob a batuta de sua distinta esposa, Dona Leonor. São momentos de cariciosa lembrança, quando fui gentilmente convidado a assinar com os demais um protocolo de doação de monumental pintura de Nossa Senhora Aparecida (obra do arquiteto e artista plástico João de Souza Araújo) à famosa Basílica dedicada à Mãe de Jesus, naquele tempo sob o comando do estimado Dom Geraldo Maria de Moraes Penido*6, seu saudoso Arcebispo Emérito. Em 1989, visitou-me na Legião da Boa Vontade e tive a honra de ser recebido, juntamente com minha família, em sua residência, numa tarde memorável, tendo ao lado sua bondosa irmã Dona Geralda, também hoje falecida. Que Deus eternamente os guarde em Seu Seio de Misericórdia!
Certa vez, fui levado a um local encantador, Amares, onde passamos algumas horas respirando ar puro, coisa cada vez mais rara, conversando com pessoas da comunidade, além das que também visitavam o aprazível lugar.
Na volta, a caminho de Braga, deliciando-me com a paisagem da Serra do Gerês, pude observar a sequência de muros de pedra, o que é comum na região. Uns eram pomposos, outros mais singelos. Até que surgiu aquele, gracioso, bem na curva, mas que, de tão pequeno, quase não se dava para perceber. Estava lá, contudo, firme, cumprindo a sua função de não permitir que, num estreito espaço não preenchido, alguém distraidamente, talvez mesmo uma criança ou um idoso, caísse no precipício profundo. E quis, então, prestar-lhe uma homenagem, como a uma pessoa humilde, desconhecida na sua modéstia, que nem por isso deixa de, por Amor, cumprir o seu dever. E, ainda no autocarro, ousei, perdoem-me, sem ser poeta, os seguintes versinhos, para musicá-los depois.
A um Muro Antigo
Na estrada de Gerês/para Braga,/existem muitos muros velhos.../Mas há um/antigo,/especialmente antigo, /bem na curva, /que à Alma afaga... /Antigo como o Amor/e como as dores... /Tão pequeno... /mas nos faz sorrir/aos favores/de nos abrir, /à Alma triste, /um prazer amplo, /de descobrir, /no seio do campo, /a beleza divinal das flores. /Enquanto outros/— grandes!... — /não têm a expressão/com que, /na sua pequenez, /fala ao coração. /Sim,/porque, se este/não é o maior dos órgãos/do corpo, /tudo sente/e tudo vê, /porque tudo vê/e tudo sente... /Eis seu escopo. /Oh! Muro pequeno, /pequeno Muro, /tão carregado de Vida! /Vida! /Vida! /como a hera/que cobre os teus lados, /feitos de pedra amolecida/e humanizada pelos anos, /muitos anos... /Ah! Muro Antigo! /de pedra antiga... /A quanta história assististe!... /E do muito que ouviste, /conta-me um pouco. /E tas escutarei, /não de ouvido mouco, /de tanto viajante, /que por aqui passa, /e não te vê... /Pois loucos laços/lhe turbam a mente... /E que oportunidade/perde, /pois não te sente/o canto dos séculos/acerantes. /Sim, porque a roda/roda... /E o que foi, /retorna adiante... /E, talvez, /Muro Antigo, /antigo Muro, /os que são cegos/para não ver-te, /e surdos/para não ouvir-te, /tenham aprendido, /finalmente, /que, /para escutar/o lamento ou o cantar/da própria pedra, /é tão preciso, /morta a regra, /amar todos os amores/do Amor Divino sem rancores.
Qual o recado do pequeno Muro?
Este: em que é menor do que um rei aquele que não foge de seu dever? Merece de todos nós o apoio e a distinção por persistir, com honra, em viver a sua dignidade. A elite de um país é o seu povo!
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*1 Foi Deus — Este fado de Alberto Fialho Janes foi imortalizado pela diva Amália Rodrigues (1920-1999). Gravado por ela em 1956.
*2 Humphrey Bogart (1899-1957).
*3 José Aparecido de Oliveira (1929-2007).
*4 Oscar Niemeyer (1907-2012).
*5 Dr. Jorge Sampaio (1939-2001).
*6 Dom Geraldo Maria de Moraes Penido (1918-2002).
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