O mais belo discurso de José do Patrocínio
Humberto de Campos relata que, na Academia de Letras, casa a que o formidável tribuno pertenceu “o senhor Félix Pacheco leu um amplo e substancioso estudo sobre a vida do Grande Negro, citando, a título de informação, os autores brasileiros que têm analisado a existência e a obra do Negro Redentor. E foi quando, agradecendo uma referência justa que fizera ao seu nome, o senhor Coelho Neto se ergueu para um daqueles seus improvisos magistrais e começou:
“‘— Senhor presidente, a obra que a figura de Patrocínio reclama ainda está por escrever. Só nós, os que o conhecemos de perto, poderíamos esculpir o gigante magnífico. Ainda assim, precisaríamos recorrer, para isso, ao trovão e ao relâmpago’.
“E recordou fatos, desenhou cenas, restaurou episódios. Lembrou Patrocínio enfermo, num catre de palhoça suburbana, coberto por um xale azul, mortalha alegre que a esposa lhe atirara sobre os ossos. Recordou-o, épico, erguendo-se, montanha de ferro diante de montanha de mármore, na luta com Rui Barbosa. E descreveu, para findar, este espetáculo, digno de grandes varões:
“‘— É na noite de 13 de maio de 1888, Patrocínio, que discursara o dia inteiro, chega à redação do A Cidade do Rio e atira-se, afônico, e semimorto de cansaço, em um sofá de seu gabinete de diretor. Amigos e companheiros cercam-no, impondo-lhe repouso. O titã não receberá mais ninguém, não atenderá mais a ninguém. Venha quem vier. E começam a tomar precauções nesse sentido, quando um dos redatores entra no gabinete e comunica:
“‘— Está aí embaixo o doutor Benjamim Constant, em companhia dos cegos do Instituto’...
“Entreolham-se todos. A homenagem é tão comovente que ninguém tem coragem de propor uma recusa.
“‘— Pede-lhes que subam... — sussurra Patrocínio, fazendo-se entender mais pelo gesto do que pela palavra’.
“Momentos depois alinham-se no gabinete desarrumado dez ou doze cegos, que se põem em fila, pisando-se aflitamente uns aos outros. Tomando a dianteira deles, Benjamim diz, comovido:
“‘— Patrocínio, os meus alunos, os cegos do Instituto, pediram-me que os trouxesse aqui para ver-te... Emprego de propósito este verbo, Patrocínio, e repito-o: meus cegos vieram te ver’.
“O Grande Negro abre a boca para falar. A barba treme-lhe, hirsuta, mas nenhum som lhe sai dos lábios grossos. Os olhos enchem-se-lhe d´água. E, desatando em soluços, mas sem proferir palavra, atira-se, com o rosto lavado de pranto, nos braços de Benjamim Constant.
“Cena soberba e patética. Todos, em torno, têm os olhos úmidos, ou choram abertamente. Os cegos, em fila, quietos, interrogam o silêncio, adivinhando o que ele esconde. Ao cabo de alguns minutos, porém, o futuro proclamador da República volta-se, emocionado, para eles, e diz-lhes, a voz trêmula:
“‘— Meus filhos, acabais de ouvir o mais belo discurso que este grande homem já pronunciou e que se poderia pronunciar no mundo. Fostes testemunhas de uma cena que só o coração pode compreender...Vamos!’” (...)
Um outro tipo de cegueira
Mais de cem anos se passaram. Eis que aquilo que as pessoas com deficiência visual souberam “ver” na cena magistralmente descrita pelo autor de Carvalhos e Roseiras, outro tipo de “cego”, hoje, nem mesmo percebe. A independência ou o cativeiro de um povo origina-se de sua intimidade moral e intelectual. Daí a famosa advertência de Jesus: “Conhecereis a Verdade [de Deus], e a Verdade [de Deus] vos libertará” (Evangelho, segundo João, 8:32).
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